Vozes do Barroco

A formação cultural do continente latino-americano não pode deixar de ressaltar, em todos os graus e variantes, a presença da voz e das oralidades, combinadas ou não às inúmeras séries e gêneros escritos. É necessário desdobrar, pelo menos, três níveis de linguagem em interação, constitutivas, desde antes e, também, após a chegada de Cabral e Colombo, dos processos criativos e culturais do Brasil, América Latina e Caribe. É o entrelaçamento das três camadas, exigindo análises micro e macroestruturais, que fundamenta o que aqui chamaremos de um Barroco de partida, isto é, enxertado à natureza, plural e intercomplementar, não determinado pela oposição ao clássico ou ao prolongamento de esquemas composicionais renascentistas.

A natureza, incrustada na cultura, seria como uma camada fundante. Os materiais botânicos nos ajudam e ensinam. Este Barroco de partida, que se configura ao modo de xaxim, trepadeira e arquipélago, fundamenta o que podemos chamar de uma poética do simultâneo inscrita nas séries da cultura. O xaxim dá a matéria adligante; a trepadeira fornece a sinuosidade helicoidal em espiral de filamentos e molas enroscantes; o arquipélago configura o conjunto de grandes e pequenas entidades, sejam ilhas ou plânctons, como pluralidades simultâneas exigindo múltiplas aptidões. Enumeremos tais camadas sucintamente.

A primeira camada se constitui do excesso de repertórios vocais ameríndio-luso-afro-arábigo-imigrantes, entrecruzados desde os tempos da Colônia, em contínuo e ininterrupto crisol mestiço. Este nível, por si só, dada a sua variação e multiplicidade, perturbaria a noção de identidade e a inteireza de um logos abstrato e racional, conteudista e platonizante, visto que a própria deriva abundante de significados impõe a presença dos significantes como corporeidade da língua. Exemplo: menino, garoto, moleque, infante, guri, piá, bacuri, curumim etc. Isto se dá também dentro das mesmas variantes internas ao nheengatu (provenientes, como enxertos ornamentais da voz, das inúmeras combinatórias das famílias idiomáticas em estado de mescla permanente) que todo o dicionário, à saciedade, nos fornece. Por exemplo, uma “ave psitaciforme da família dos psitacídeos” (Aurélio) produz todas estas variantes corais, numa espécie de poética vocal de repertório expandido: chauã, chauá, jauá, acamatanga, acamutanga, acumutanga, camatanga, camutanga, cumatanga. Trata-se de um almoxarifado de poesia em estado de dicionário (Gregório de Mattos dixit). Uma bateria de vozes em bumerangue ou palíndromo na grafia que, quando pronunciadas, fazem emergir as placas tectônicas dos vozerios ocultos da paisagem sonora. Os exemplos poderiam vir também do quimbundo, do iorubá ou do banto: munganga, quizumba, macumba, quiabo, quitanda. Já aqui estão presentes, sob forma de distribuição larval, em contínuo processo de morfose metamórfica, os elementos de composição e os procedimentos de construção, já constantes da fala ordinária, que serão usados na música popular, no cinema, na poesia etc.: diagramas gráfico-sonoros e visuais, aliterações e rimas em palíndromo, paronomásias (para dizer pouco). Já aqui a unidimensionalidade dos idiomas flexionais é deslocada e parodiada pelo caráter aglutinante do tupi ou do quimbundo, de tal modo que a linearidade sequencial é desviada pela potência progressivo-regressiva, não digital, da performance rítmico-sonora. Nesse caso, as sonoridades da voz/ambiente/natureza têm valor poético-político, visto que dispersam os conteúdos lineares e rígidos com que todo sistema de poder homogeneíza para dominar, através da repetição conformadora do mesmo, os descuidados falantes.

A segunda camada é formada pela abundância de palavras em que a junção onomatopaica e melismática é dominante com relação ao significado, tendo em vista a contribuição do nheengatu, do banto e do quimbundo, que invade não só o dicionário, mas toda a prosódia e sintaxe. O conteúdo abstrato dos vocábulos é abalroado pelo significante vocal e rítmico-musical: as onomatopeias se aproximam sonoramente das coisas da paisagem e os melismas marchetam as sílabas com dobras e sinuosidades ornamentais (jururu, murundu, tiririca etc.). Isto mostra, junto à presença do corpo na voz, a relação entre as entranhas da fala (boca, garganta, pulmão, todo o sistema nervoso e muscular do aparelho de fonação) e o ambiente onde sujeitos e paisagem cultural se situam. Esses fonogramas embebidos de natureza/cultura não permitem a elevação logocêntrica do significado, isolado abstrata e digitalmente do significante, nem a separação entre signos e “referentes” estabelecida conforme a tradição ocidental de Platão a Saussure. Não se trata, desnecessário dizê-lo, da exclusão dos conteúdos: mas de libertá-los da doxa das oposições pela variação do múltiplo conexo. Como o fez Guimarães Rosa no título luso-tupi “Sagarana”, ou como nas expressões populares, recriadas em todas as épocas e lugares, tais como “sanduba” “traíra”, “piaba” e tantas outras em que a vinculação oral/corporal entre voz e vogal dissemina e confere potência rítmica ao conteúdo, que passa a ser acossado pela força vocal. O processo pode ser levado às maiores consequências na poesia, como nos “fonemas negroides” de Nicolás Guillén em “Sóngoro Cosongo”, onde os fonogramas captam, via o arredondamento sinuoso e sensual das vogais, os requebros físicos da dança e canto do “son” cubano e do bongô afroarábigoantilhano que dão ritmo ao ambiente urbano.

A terceira camada refere-se à potência acústica na natureza/cultura que se encadeia, se incrusta e se enxerta nas linguagens com todos os rumores da paisagem cultural. Esta capacidade nunca é apenas geral ou panorâmica, mas tem de ver com os modos específicos a partir dos quais os códigos universais são trabalhados, miudamente, na relação com a paisagem e com os objetos de um determinado ambiente, e estes na relação com suas séries e arredores da cultura. Visto que “as línguas têm uma sensibilidade em relação à experiência acústica do ambiente” (Cavarero, “Vozes Plurais”, 2011: 177), isto se dá em muito maior grau naquelas em que o elemento onomatopaico e melismático, que represa a natureza, predomina sobre o flexional/digital. A mesma Adriana Cavarero, citando o poeta criollo-caribenho Edward Kamau Brathwaite, mostra como se interligam as camadas aqui mencionadas: “Esse fenômeno, observa Brathwaite, não diz respeito apenas à contaminação dinâmica de línguas diversas, mas também ao problema que as vincula aos diferentes universos sonoros do ambiente natural em que nascem e se desenvolvem” (Cavarero, 2011: 177). A exuberância de tal magnífico problema reside em que os signos são, digamos, nessas circunstâncias culturais, de um lado forçados para baixo, de outro a própria natureza invade os signos com suas espirais em trepadeira; o logos se dessemantiza e as linguagens adquirem um vasto âmbito de práticas e ressonâncias rítmicas e prosódicas do escutar e dizer– aquém dos, apesar dos e em conjunto com os signos.

A Mestiçagem em Camadas

Amálio Pinheiro

PUC-SP