NATUREZA

Por Mila Goudet

esse mundo é feito da substância que brilha nas estremas lindezas da matéria.

Paulo Leminski

Neste momento em que a degradação do meio ambiente alcança níveis planetários, a ideia de natureza é passada em revista. O culpado é conhecido, anunciado em toda a parte, na televisão, no rádio, na internet, no cinema: o ser humano – categoria abstrata da qual fazemos parte sem questionamentos. A acusação procede, não há como negar os resultados do projeto racionalista da modernidade, no qual o homem esgota a natureza como recurso a serviço da acumulação econômica, causa primeira da cilada ambiental. É a construção antropocêntrica de mundo que remonta, ao menos no Ocidente, ao período clássico, quando Apolo ensinava fiéis a erigir templos e pavimentar estradas sobre as terras virgens em direção ao Parnaso. O homem helenístico espantou a cobra, baniu os insetos, cortou as árvores, dominando a pedra bruta com a pedra lavrada (ainda que os deuses e os terremotos pusessem tudo abaixo, vez ou outra). 

Enquanto isso, no Brasil pré-cabralino, os povos originários concebiam mundos nos quais todos os seres, vivos e não vivos, estavam (e ainda estão) em processo contínuo de transformação e de composições interdependentes (Tim Ingold, Eduardo Viveiros de Castro, Isabelle Stengers). O cosmo indígena é um emaranhado complexo de relações descentralizadas: nem mesmo a humanidade é característica exclusiva dos homens, mas atributo compartilhado entre todos os seres – rios, pedras, árvores, animais, astros. As sucuris, assim, sabem cultivar roçados de plantas aquáticas apropriadas à sua subsistência, as árvores castanheiras se alegram com o calor dos pés dos homens, produzindo mais frutos e definhando sem o seu contato. Mas tal partilha da condição humana não é pacífica ou sem disputas: para a onça, o homem é caça e, seu sangue, celebrado como bebida de festa (Eduardo Viveiros de Castro, 2002). 

Esse emaranhado relacional que engaja a natureza dos povos originários foi para o europeu recém desembarcado um excesso fatal de paisagem, que engoliu as traduções imediatas. As tentativas desastradas que os portugueses empreenderam no domínio da natureza e na defesa de fronteiras imaginárias foram fracassos retumbantes. A arquitetura fortificada brasileira, um dos exemplos mais próximos do pensamento clássico implantados no período colonial, se esforça em vencer com a pedra antropocêntrica o bulício da natureza; no entanto, a paisagem impõe tantas variáveis que a racionalidade do traçado renascentista acaba não ordenando grande coisa. Em primeiro lugar, o inimigo estava em toda parte. Os fortes precisavam defender o território tanto do ataque de piratas como dos indígenas. 

Em Bertioga, litoral paulista, o forte foi concluído em 1560 depois de um violento ataque tupinambá que pôs abaixo a precária paliçada existente, terminando com os tupiniquins, aliados dos portugueses, sendo devorados pelos canibais. Mesmo seguindo o projeto enviado por Portugal, há vários relatos que denunciam a impossibilidade de controlar através dessa arquitetura a natureza e o clima locais. Um deles, datado de 1773, diz que a mata envoltória era tão densa que tornava o forte indefensável, pois não havia como antecipar a chegada de invasores pela floresta antes que eles tivessem invadido a construção. Outro, de 1795, narra a imposição das umidades e da maresia na degradação do espaço e na corrosão das artilharias de ferro. 

A Fortaleza da Bertioga tem sete peças, todas desmontadas, e acho que só duas poderão dar fogo; o quartel está arruinado e por ser muito úmido não pode conservar um só barril de pólvora, e nem tem parte onde se lhe possa fazer cômodo para o ter sem grande risco. Nesta fortaleza por força a artilharia há de estar ao tempo e por isso precisa que o carretame seja pintado para lhe poder resistir. (Documentos Interessantes para a História e Costumes de São Paulo, 1894)

A maresia solda os metais, atravanca as engrenagens, a umidade derrete a taipa, abre frestas por onde se esgueiram plantas e insetos. Manter a previsibilidade dentro do forte era uma tarefa inglória pois a natureza era impositiva sobre os materiais humanos disponíveis. Desentranhar a natureza dos modos de vida na América Latina ainda se mostra infrutífero, por mais que os sistemas dominantes queiram nos convencer do contrário. “Aqui a natureza não respeita diálogo nem as horas de amor. Nossa natureza com certeza se alegra no seu orgulho de ver o homem como uma árvore a mais” (Lezama Lima, 1969, p. 313).

Referências
  • Adriana Sanajotti Nakamuta. Forte São João e o patrimônio histórico e artístico nacional. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, São Carlos, São Paulo, 2009. Disponível em: https://tinyurl.com/328brapz. Acesso em: abr. 2020.
  • Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo. v. XLIV. São Paulo: Typographia Paulista, 1894. Disponível em: https://tinyurl.com/rnwvbh8s. Acesso em: set. 2021.
  • Eduardo Viveiros de Castro. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac&Naify, 2002.
  • Igor Scaramuzzi. Os modos de vida, criação e reprodução das florestas de castanhais no Alto Trombeta, Oriximiná (PA). In: Joana Cabral Oliveira et al. (Orgs.). Vozes vegetais: diversidade, resistências e histórias da floresta. São Paulo: Ubu, 2020.
  • Joana Cabral Oliveira. Sobre florestas cultas. Cult, São Paulo, ano 24, n. 273, p. 44-46, set. 2021.
  • José Lezama Lima. Tratados en La Habana. Buenos Aires: Ediciones de la Flor, 1969.
  • Joseph Rikwert. A coluna dançante: sobre a ordem na arquitetura. São Paulo: Perspectiva, 2014.
  • Mário Henrique D’Agostinho. A coluna e o vulto: reflexões sobre a casa e o habitar na história antiga e moderna. São Paulo: Annablume Clássica, 2016.
  • Mario Rique Fernandes. O mundo num ouriço de castanha: a mitopoética dos índios Apurinã e o espírito ancestral das castanheiras. In: Joana Cabral Oliveira et al. (Orgs.). Vozes vegetais: diversidade, resistências e histórias da floresta. São Paulo: Ubu, 2020.
  • Paulo Leminsky. Catatau. São Paulo: Iluminuras, 2015.
  • Renato Sztutman. O animismo hoje. Cult, São Paulo, ano 24, n. 273, p. 40-43, set. 2021.

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