Amálio Pinheiro
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Mestiçagem não é apenas cruzamento de raças, mas interação entre objetos, formas e imagens da cultura. A mestiçagem não opera por fusão, que apaga as diferenças, nem por mero reconhecimento das diversidades, que as mantém isoladas. Não se interessa apenas pelas grandes diferenças explícitas, que podem, invejosas do centro, se coagular grupalmente; nem pelas diferencinhas da moda forjadas pelas tecnociências a serviço dos consensos da grande mídia e do mercado capitalista. A mestiçagem vem de baixo, dos poros, das plantas dos pés e dos escaninhos da cultura. É um conhecimento das entranhas e do múltiplo em metamorfose a partir do salto canibalizante no alheio, em vaivém e ziguezague, montagem em mosaico móvel dessas multidões de outros, suas linguagens e civilizações. Essa multiplicidade cabocla tem sua matemática e sua geometria: sempre vai além do 1 e nunca se fecha no 3; foge das linhas e dos ângulos retos; adora os advérbios “também” e “ainda”; detesta as alternativas duais expressas pela conjunção “ou”. Isto se dá com e apesar dos sujeitos: estes, limitados a seu meio, família, grupo (ou seja, ideologia, saber, poder ou verdade) nem sempre aceitam e abrigam essas potências marginais enviesadas de fora e da rua.
A mestiçagem se forma e se expressa, portanto, aquém das lógicas binárias das identidades e das oposições: a dualidade centro/periferia não lhe serve. A mestiçagem é uma onça alegre que se alimenta de todas esses entres e outros (bichos, gentes, objetos) escondidos, abandonados e rejeitados pelo que se quer Pequeno (dificilmente reconhecível) ou Grande Uno (fácil de reconhecer). O que importa são todos esses outros que se multiplicam variando (mostrando as suas microcélulas relacionais) e deixam de ser Um para devirem entre-outros, interstícios e reentrâncias de plantas-bichos-gentes-coisas. Os sistemas binários das “lógicas” do capitalismo internacional e dos grandes e pequenos grupos de qualquer ordem “identitária” detestam essas marginalidades multiplicantes que, sempre em “salto alegre ao desconhecido” (Lezama Lima), com uma atenção rigorosamente dirigida às nervuras desviantes intercombinadas, estão sempre aí por debaixo e nunca se adaptam aos sisteminhas vencedores. Em São Paulo (esse gigantesco Adoniran Barbosa em filigrana), as forças, afetos e potências negrocafuzas, ítalocaipiras e tupicaboclas podem desprezar as novas tecnotelediferenciazinhas (modas/tédios/ambições competitivas das mediocracias) dançando nos terreiros, rodas e blocos do grande carnaval de tudo isso que vai de-cada-um-gingando-a-todos-os-outros e de-todos-os-outros-gingando-a-cada-um.A mestiçagem passa sempre longe das totalizações epocais sucessivas: ser moderno, não-moderno, pós-moderno ou contemporâneo lhe é um alimento esporádico e desprezível de superfície, já que pensa, come e trabalha por aglutinações fora-dentro e alto-baixo, de inúmeros pertencimentos, camadas e competências corpovocalcognitivas. Os conflitos entre o velho e o novo não lhe bastam, porque inevitavelmente opositivos, querela trivial de gerações. Habita-se, ao mesmo tempo e desde sempre, da multiplicidade da variação mirim em relação contínua. Adora os paradoxos, os avessos e as inversões, todos os movimentos progressivo-regressivos em vaivém e arquipélago: “Sagarana” (Guimarães Rosa); “Es um imperio / aquella luz que se apaga / o una luciérnaga?” (Borges); “Índio antes del hombre y después de él! (César Vallejo)”. Ou o “Mar Paraguayo” de Wilson Bueno, escrito em brasilguayo “malhado de guarani” (Néstor Perlonguer): “Un aviso: el guarani es tan essencial en nesto relato quanto el vuelo del párraro, lo cisco en la ventana, los arrulhos del português ô los derramados nerudas en cascata num solo só suicídio de palavras anchas. Una el error dela outra”. Línguas de comissuras, mestiças como cachaça, cabaça ou zinabre das metamorfoses. Mar caiçara: robalo, oveva, prejereva, manjuba, pirabiju. Os nomes é que fazem os peixes pularem para a boca. E todos os lusocastelhanoiorubás: bunda quimbunda, bunda-bongô que soletra ritmos e marinhas, com as cuícas guaranis de fundo. Vitalismo caseiro, animismo da paisagem: “Chegou a hora, chegô chegô; / meu corpo treme e vibra qual pandeiro. / Chegou a hora e o samba começou; / e foi chamar o tango pra parceiro.” (Amado Régis).Não lhe é suficiente o hibridismo, pois que à mestiçagem não interessam apenas as proximidades e aglomerações quantitativas de fronteira, mas principalmente as inclusões e conexões assintáticas e pré-sintáticas, assemânticas ou plurissemânticas, através de todos os procedimentos de toda e qualquer linguagem, através de todos os desconhecidos procedimentos dos magmas e lavas anteriores às linguagens, que transformam o separado, seja distante ou próximo, em retículas, ourivesaria ou labirintos de alteridades em ação e reação.
A mestiçagem respira com a tradução. Repudia a noção de influência, pois vive das incorporações. Não aceita deuses exclusivos. Não se satisfaz com a diferença, a não ser que esta também se misture e desdiferencie: desdiferenças que desdiferem e rediferenciam rasgando as diferenças. Não tem de “respeitar” o outro, porque ela “está” no outro. Vive no devir do outro, de partida e para sempre. Sendo marchetaria, pigmentação, filigrana, cerzidura não-ortogonal, tessitura miniaturalmente concreta da cultura em arabesco, desde sempre nômade e multitudinária, nunca está só nos conteúdos das mensagens: entra nas páginas, imagens e telas como forma significante em devir; pode estar nos babados dos quadris que andam e dançam ou nos corpúsculos frutais de um poema, canção, filme ou novela. Está na relação íntima entre cores e tons, corpos e paisagens. Interliga os paradoxos, o estranho e o desconhecido.Habita-se das galáxias e dos arquipélagos. Expulsa os objetos e conceitos fixos e definíveis. Instaura uma necessária confrontação entre a sua velocidade lúdica de ritmos/gestos e as velocidades quantitativo-evolutivas da telemática.
Esta mestiçagem não se explica pelo discurso dos meios, poderes e instituições: atua, coletiva e anonimamente, nos porões da história e nas séries da cultura cotidiana, como enorme laboratório e almoxarifado da memória, dos acontecimentos e da paisagem, desde um simples objeto de uso doméstico aos grandes espetáculos populares. Sem ela não há mediação possível. Daí que suas melhores imagens procedam das paisagens botânicas, onde todos os fatores ambientais, pra cima e pra baixo, pra dentro e pra fora, atuam, tectonicamente e ao ar livre, em conjunto, sem fim ou começo: xaxim, trepadeira, caramanchão.
A mestiçagem, na América Latina e no Caribe, não tem de correr atrás nem de superar nenhum paradigma da chamada ciência ocidental. Por ser constitutiva do nosso conhecimento, é o inevitável território de qualquer experiência múltipla e dilatada das excessivas misturas a que temos chamado, à falta de melhor nome, Barroco.
Amálio Pinheiro
São Paulo, outubro de 2017